sábado, 11 de julho de 2009
A narrativa da doença
“A literatura ajuda Médicos a compreender a história de seus pacientes e a formular diagnósticos mais precisos”.
* Moacyr Scliar
Frustrado pela escassa repercussão de sua obra literária, o grande escritor tcheco Franz Kafka (1883 – 1924) observou que sua trajetória girava em torno do absurdo que é trocar a vida por palavras. Isso pode mesmo ser uma incoerência; mas a verdade é que a vida só pode ser compreendida, se for expressa em palavras. Nasce assim aquilo que é parte inseparável pela existência humana: a narrativa.
Contar e ouvir histórias são necessidades que estão embutidas em nosso próprio genoma. Daí os mitos, aquelas fantasias que servem para explicar fenômenos em geral naturais que, de outra maneira, seriam incompreensíveis ao menos para as culturas ditas primitivas. Daí também as histórias infantis, das quais criança alguma prescinde. Daí os livros sagrados, o Antigo Testamento, o Novo Testamento e o Corão. E daí também a grande literatura. Escritores tornaram-se célebres por usar as palavras – e a narrativa – como meios de criação estética.
Apesar do ceticismo de Kafka, continuamos a nos maravilhar com sua ficção. Mas todo mundo conta histórias, seja como forma de confraternização, de divertimento, de desabafo. A narrativa esta presente no cotidiano, às vezes em situações angustiantes. É o caso da narrativa de pacientes que vão ao médico. A pergunta: “O que o traz aqui?” ou “Em que posso ajudá-lo?” faz com que a pessoa, com maior ou menor dificuldade, conte uma história que pode começar assim: “Eu estava bem doutor, mas aí surgiu essa dor no peito...”.
A medicina tem um nome para a história que o paciente narra espontaneamente ou respondendo a perguntas: anamnese. A palavra vem do grego e quer dizer “não esquecer”, “lembrar”. Aquilo que a pessoa diz é então “traduzido”para a linguagem técnica no sentido de formular um diagnóstico ou uma hipótese. Isto, som apoio do exame clínico e das análises complementares, como as dosagens sanguíneas. À medida que a tecnologia foi se aperfeiçoando, diminuiu a importância da anamnese, que às vezes se restringe a alguns minutos. Mas essa mudança não se fez sem um preço. Médicos e pacientes constatam – com preocupação – que prejudica a empatia. Resultado: insatisfação, que muitas vezes se transforma em até em processos judiciais contra os profissionais.
Muitos médicos estão tentando recuperar a importância que a narrativa do paciente tinha no passado. São adeptos da medicina narrativa que tem vários expoentes, a começar pela médica americana Rita Charon, que dirige o pioneiro programa de medicina narrativa na prestigiosa Universidade de Columbia, em Nova York,e que ensina médicos e estudantes a valorizar a história, e, por meio dela, a vida emocional do paciente. Para isso, o programa busca ajuda na teoria literária, e isso, a também PhD em literatura Rita Charon conhece bem.
Grandes escritores – Machado de Assis de O alienista, Leon Tolstoi de A morte de Evan Illich, Thomas Mann de A montanha mágica – podem nos ensinar muito sobre a condição humana numa situação-limite de doença. Estudar escritores é parte do curso da Columbia, que se enquadra nas humanidades médicas, grupo de disciplinas que ensinam a lidar com o contexto histórico, social e psicológico que envolve a enfermidade.
Será a medicina narrativa uma especialidade? Rita é a primeira a responder negativamente. Não se trata de saber manejar este ou aquele equipamento, realizar tal ou qual procedimento; trata-se de uma atitude diante de uma pessoa doente, uma disponibilidade que traz em si a generosidade e a arte da grande literatura.
*Moacyr Scliar é médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras.
Aroldo Moraes Junior
PhD em Health Economic
Publicado na revista Mente&Cérebro – Junho 2009.
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