O que promove o indivíduo na sociedade de consumo é a posse de um bem e não o seu uso ; nela o desejo de posse é mais importante do que a vontade de usufruir. Os que aparentam ou ostentam o sucesso tornam-se alvo de inveja e de cobiça, tanto por parte dos privilegiados quanto dos excluídos. Mas só a reação dos últimos, os pobres e os miseráveis, tem sido fonte de preocupação social.
Levado ao extremo esses sentimentos podem provocar a necessidade de subjugar ou eliminar o invejado, sempre que ele representar um obstáculo à satisfação das necessidades idealizadas. Para os que não atingiram a condição de cidadãos, ou que a perderam por algum infortúnio, como o desemprego, desaparece o medo das conseqüências pelas transgressões praticadas. Ao contrário, cresce em seu íntimo um impulso de confrontar as normas, estatutos e leis. E, certamente, a tentação de ingressar na ilegalidade, até como forma de escapar de um perturbador sentimento de inferioridade.
O resultado disso tem sido uma assustadora escalada de conflitos, marcada pelo recrudescimento de todas as formas de radicalismos. Em nosso caso particular, esse fato está tornando caótica a realidade urbana, contrapondo verdadeiros "neo-estados" ao Estado legal.
Na batalha social contemporânea a luta pelo viver e sobreviver ameaça seriamente a estabilidade mental de todos os cidadãos. Esse quadro está se agravando com a irrupção generalizada de variadas formas de violência, fazendo com que o comportamento habitual oscile entre destemor irracional e o horror paralisante.
Chegamos ao que Mario de Andrade profetizou: a um grau de canibalismo social intolerável. A ferocidade é agora um sentimento que identifica os que muito têm com os que nada possuem. Os “territórios”, aristocráticos ou miseráveis, são defendidos com o mesmo primitivismo e a mesma selvageria. As ruas viraram cenários de verdadeiras batalhas, multiplicando o número das vítimas inocentes dos confrontos reiterados.
Os avanços da ciência marcam a forma com que os homens identificam a vida social. Mas o ciclo das inovações tecnológicas sempre padeceu de um pecado original : cada problema que resolvia outros mais inquietantes gerava. E como hoje não existe quase intervalo entre as novidades científicas e sua aplicação prática, esse fenômeno se agrava continuadamente.
Qualquer nova descoberta faz com que o "marketing" passe a considerar ultrapassadas as máquinas e os instrumentos que representam a solução tecnológica imediatamente anterior. E promove seu consumo à condição de necessidade absoluta. Uma recente frase, de Bill Gattes, consagra esse irracionalismo consumista : “nossa meta é tornar os nossos produtos obsoletos, antes que os concorrentes o façam”.
Uma conseqüência crítica da evolução tecnológica, entre nós, foi a aceleração da migração em direção aos centros urbanos, onde já se concentra cerca de 75% de toda a população brasileira. Segundo o IBGE, entre 1991 e 1996, 1,8 milhões de pessoas abandonaram as zonas rurais. Essa onda incontrolável reúne hoje uma crescente legião de desesperados. Ávidos por usufruir os benefícios de um progresso hipotético eles invadem a periferia das cidades mais desenvolvidas ou supostamente com melhores condições de sobrevivência e trabalho. A esperança primeiro se transforma em desencanto e logo depois em revolta incontrolável. Esse mecanismo pode não explicar toda a violência urbana mas certamente corresponde ao que ocorre na grande maioria dos casos.
A solução, todos sabem, está na criação de estímulos inversos, capazes de possibilitar a fixação desses migrantes no campo. Agora mesmo, quando as forças políticas se proclamam mobilizadas para a modernização do país nenhuma proposta clara é apresentada para modificar nossa estrutura agrária medieval. Mas enquanto uma solução estrutural não se efetiva, urge intensificar o trabalho de integração dos aglomerados periféricos consolidados,assegurando-lhes os serviços públicos básicos: saneamento, assistência médica, água, luz e amparo legal.
Os projetos já executados, em nosso meio, transformando favelas em bairros, demonstraram que essa empreitada inadiável custa menos de dois salários mínimos, por habitante. Há quase dez anos já dizia o economista Carlos Lessa: “Caso se coloque, como meta anual,atender a 4 milhões de pessoas, no conjunto das cidades brasileiras, o gasto será de 2 bilhões de dólares por ano ; no final de 10 anos, alcançaríamos um total de 40 milhões de beneficiários, a um custo de 20 bilhões de dólares... o que representa apenas 7% do produto interno bruto ( PIB ) " .
Só na recente e infeliz tentativa de proteger o real do capital especulativo, que de nada valeu, o país jogou no lixo o que daria para custear um projeto dessa envergadura, de repercussão social inestimável.
Alvaro Acioli – Medico da Associação Fluminense de Medicina
A Folha de Niteroi - Ed. 201 - 5 a 11 de fevereiro de 1999
Colaboração do Prof. Wellington Santos
Universidade Estácio de Sá
Pós-graduação em Auditoria de Sistemas de Saúde
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