terça-feira, 11 de outubro de 2011

Tratamento médico em excesso custa quase US$ 7 bilhões.

Procedimento sem necessidade também ameaça saúde da população, diz estudo

'Overtreatment', agora está no centro dos debates médicos nos Estados Unidos, onde o levantamento foi feito.

CLÁUDIA COLLUCCI

DE WASHINGTON
"Overtreatment": excesso de procedimentos que, além de não fazer diferença no desfecho do problema do paciente, às vezes até pode piorar a situação - e aumentar muito os custos em saúde.

O assunto está no centro dos debates no meio médico nos Estados Unidos, presente em congressos e na literatura científica.

Na edição deste mês, o periódico "Archives of Internal Medicine" publicou um estudo em que estima um desperdício médio anual de US$ 6,76 bilhões em tratamentos não recomendados ou desnecessários no país. E isso só no âmbito dos cuidados primários (clínica médica, pediatria e medicina de família).

O estudo, que envolveu pesquisadores de quatro instituições, concluiu que, dentro de um universo de quase 1 milhão de atendimentos avaliados, até 56% deles tiveram procedimentos inadequados nesse sentido.

Com base no trabalho, a Aliança Nacional dos Médicos (National Physicians Alliance) americana lançou no último fim de semana, durante conferência em Washington, uma campanha para promover as boas práticas clínicas entre os profissionais de saúde do país.
OS CAMPEÕES

Foram escolhidos os cinco procedimentos que mais frequentemente são feitos sem necessidade, segundo critérios do CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças) e de instituições que trabalham com medicina baseada em evidências, como a britânica Cochrane. Na área de clínica geral, por exemplo, foi recomendado não prescrever antibiótico para sinusite a menos que os sintomas (secreção nasal purulenta e dor maxilar ou facial) persistam por mais de uma semana.

A justificativa é que a maioria desses episódios são virais e desaparecem por si só. No entanto, antibióticos são prescritos para até 80% dos pacientes desde o início dos sintomas, segundo o médico Stephen Smith, diretor da campanha da National Physicians Alliance.

Na pediatria, a prescrição de antibióticos também não está recomendada em casos de faringite, a menos que haja teste bacteriano (Streptococcus) positivo.

A razão é a mesma: a maioria dessas inflamações de garganta é provocada por vírus e não vai responder aos antibióticos. Mesmo assim, essas drogas ainda são usadas em mais de 50% dos casos.

"O uso incorreto de antibióticos traz riscos em potencial para pacientes, aumenta a resistência bacteriana e os custos em saúde", diz Smith.

Na área de medicina de família, as recomendações abordam exames tidos como desnecessários para certos perfis de pacientes. É o caso da densitometria óssea antes dos 65 anos (mulheres) e 70 anos (homens).

"É dever do profissional de saúde saber identificar o que não é benéfico para o paciente, especialmente se isso envolver custos ao sistema de saúde", pontua Howard Brody, diretor do Instituto para as Humanidades Médicas da Universidade do Texas.

Para a médica Rita Redberg, editora do periódico "Archives of Internal Medicine", a questão também passa por conflitos de interesse. "Há muita influência da indústria nas decisões médicas. Precisamos fazer da prevenção a nossa prioridade e evitar procedimentos e que não ajudam o paciente."
'Mais cuidado não significa melhor cuidado', diz médica

DE WASHINGTON
Coautora do livro "The Treatment Trap" (a armadilha do tratamento, em uma tradução literal), a escritora Rosemary Gibson, também especialista em políticas e economia da saúde, afirma que "mais cuidado não significa necessariamente o melhor cuidado."

Gibson alerta ainda para os procedimentos desnecessários que podem fazer mais mal do que bem aos pacientes, como as tomografias computadorizadas e as cirurgias de coluna. A seguir, trechos da entrevista que concedeu à Folha.

Folha - Qual é a linha que separa um tratamento apropriado de outro inapropriado

Rosemary Gibson - Um cuidado apropriado é baseado em claras evidências científicas, vindas de pesquisas independentes, e vai beneficiar o paciente. Um tratamento inapropriado não tem esse amparo.

Há muitas incertezas na medicina e médicos podem, legitimamente, discordar se o tratamento fará ou não bem ao seu paciente. Mas precisam sim começar a reduzir o excesso de exames, procedimentos e de cirurgias desnecessárias.

Um bom exemplo aqui nos EUA é o uso abusivo de tomografias computadorizadas, que aumentam o risco de a pessoa desenvolver câncer por conta da radiação. Há uma estimativa de 14,5 mil pessoas morrem todos os anos por exposição a radiação desses aparelhos. Esta é uma área para se começar.

Como prevenir isso numa cultura em que as pessoas estão cada vez mais preocupadas com a saúde e querem tudo o que estiver ao seu alcance?

Para prevenir ou cortar esse excesso de tratamentos, nós devemos jogar luz sobre os perigos. O problema não será solucionando se não falarmos sobre ele. Nós precisamos colocar faces humanas nisso, contar histórias reais de pessoas que ficaram piores, e não que melhores, com o mau uso da medicina.
No Brasil, embora também haja excesso de procedimentos desnecessários, também se enfrenta o oposto. Pessoas esperando em filas intermináveis para conseguir tratamento. Como administrar esses dois mundos?

O mesmo fenômeno ocorre nos EUA. Por um lado, temos pessoas que são submetidas a cirurgias na coluna que a literatura médica tem demonstrado que não trazem benefício e expõem as pessoas a um real perigo. É uma loucura que a sociedade pague por um sistema que causa um dano desse tipo ao paciente.

Por outro lado, há pessoas que não recebem o cuidado que realmente precisam, como tratamentos de câncer. A solução para isso é parar de pagar tratamentos que vão deixar as pessoas piores, e não melhores. O Medicare (programa nacional que cobre tratamento para pessoas idosas) fez isso para certas cirurgias de pulmão. Esta é uma boa política pública.

Quais lições que o governo e os pacientes brasileiros devem aprender com a situação atual do sistema público americano?

Primeira: propaganda de remédio e de aparelhos em saúde jamais deve ser permitida na TV e nas mídias.

Segunda: médicos devem ter salários e não ser pagos na base de remuneração por serviço (fee-for-service). Desse forma, ele ganha mais fazendo mais cirurgias, testes e procedimentos.

Terceira: cuidados primários devem ser a base de qualquer sistema de saúde. Eles ajudam a prevenir doenças e mantêm as pessoas mais saudáveis. Isso se traduz em economia. Nos EUA, é difícil encontrar um clínico geral porque muitos se tornaram especialistas.

Fonte: Folha de S.Paulo, segunda-feira, 10 de outubro de 2011
Imagem: Google Imagem

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